A lei 9.514/97 permitiu às instituições financeiras o direito de executar de forma extrajudicial contratos de financiamento habitacional. Tratando da legalidade do procedimento de execução, uma decisão da Ministra Maria Isabel Gallotti mostra porquê o Superior Tribunal de Justiça vem se tornando cada vez mais um tribunal afastado da realidade dos brasileiros.

O caso levado a análise junto ao STJ diz respeito à nulidade do procedimento de execução realizado pelo banco Votorantim em face de duas empresas pelo rito da Lei 9.514/97. Basicamente alegaram as empresas a nulidade da intimação para pagamento do débito e a nulidade do procedimento por ausência de notificação sobre datas, horário e local dos leilões.


Especificamente no que tange à notificação sobre as datas, horário e local dos leilões, que é o objeto deste nosso texto, a i. Relatora Maria Isabel Gallotti destacou que a exigência de tal notificação somente se fez necessária a partir da entrada em vigor da Lei 13.465/2017:

Registro que, no âmbito da Terceira Turma deste Tribunal, essa questão já se encontra, de fato, pacificada, porém, o entendimento que vem sendo adotado merece, ao meu sentir, com a devida vênia, ser revisto, ao menos, para fins de fixação de marco temporal, a partir de quando passou a ser, de fato, exigida a intimação do devedor fiduciante da data da realização do leilão do bem imóvel objeto do contrato de alienação fiduciária.

Saliento que essa exigência de intimação da data do leilão só passou a existir a partir da entrada em vigor da Lei 13.465/2017, que incluiu alguns parágrafos no art. 27 da Lei 9.514/97, que rege a alienação fiduciária de coisa imóvel.

O fundamento jurídico além de raso, demonstra que houve ausência de análise e interpretação sistemática das leis. Isso porque, antes da entrada em vigor da Lei 13.465/2017, o art. 39, inciso II da Lei 9.514/97 dispunha o seguinte:

Art. 39. As disposições da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, e as demais disposições legais referentes ao Sistema Financeiro da Habitação não se aplicam às operações de crédito compreendidas no sistema de financiamento imobiliário a que se refere esta Lei.    (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023)

(…)

II – aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, exclusivamente aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca.       (Redação dada pela  Lei nº 13.465, de 2017)

A ministra até reconheceu a aplicabilidade do Decreto-Lei 70/66 ao caso, porém, erroneamente afirmou que não havia previsão de notificação dos devedores:

Observo, ainda, que sequer existe, nos dispositivos do Decreto-lei 70/66 regentes da execução extrajudicial de dívida hipotecária, a exigência de intimação do devedor acerca da data dos leilões, mas apenas a notificação para a purgação da mora (arts. 31 e 32). 

No caso da execução extrajudicial de dívida garantida por hipoteca regida pelo Decreto-lei 70/66, a necessidade de intimação da data dos leilões decorre de criação jurisprudencial.

Vale trazer normativos contidos no Decreto-Lei 70/66 para demonstrar que desde 1966 a notificação do devedor acerca da data, horário e local dos leilões era uma obrigação legal do procedimento, assim como o direito do mutuário de pagar o débito até a assinatura do auto de arrematação:

Art 34. É lícito ao devedor, a qualquer momento, até a assinatura do auto de arrematação, purgar o débito, totalizado de acôrdo com o artigo 33, e acrescido ainda dos seguintes encargos:(Revogado pela Lei nº 14.711, de 2023)

Art 36. Os públicos leilões regulados pelo artigo 32 serão anunciados e realizados, no que êste decreto-lei não prever, de acôrdo com o que estabelecer o contrato de hipoteca, ou, quando se tratar do Sistema Financeiro da Habitação, o que o Conselho de Administração do Banco Nacional da Habitação estabelecer.(Revogado pela Lei nº 14.711, de 2023)

Parágrafo único. Considera-se não escrita a cláusula contratual que sob qualquer pretexto preveja condições que subtraiam ao devedor o conhecimento dos públicos leilões de imóvel hipotecado, ou que autorizem sua promoção e realização sem publicidade pelo menos igual à usualmente adotada pelos leiloeiros públicos em sua atividade corrente.

Se não bastasse a disposição do Decreto-Lei 70/66 que desde 1966 determinava isso, também o Código de Processo Civil de 1973 e 2015 determinam que em procedimento de leilão judicial, o devedor deverá ser intimada das datas, horário e local dos leilões, podendo purgar o débito até a arrematação. Ou seja, sempre houve essa previsão em diversos diplomas legais, não se tratando de uma inovação legislativa, conforme tentou demonstrar a Ministra Maria Isabel Gallotti.

Além da interpretação sistemática com diálogo entre a Lei 9.514/97 e também o Código de Processo Civil, poderia a Ministra levar em consideração princípios contratuais como o da boa fé objetiva e o dever de informação ao consumidor dispostos no Código Civil de 2003 e no Código de Defesa do Consumidor de 1990.

Por fim, mas não menos importante, vale lembrar que o que efetivamente transfere a propriedade do imóvel para o credor fiduciário é a não arrematação do imóvel em um dos dois leilões obrigatórios da Lei 9.514/97, isso porque, sem realizar os leilões do procedimento de execução, não se pode considerar a propriedade plena do bem em favor do credor fiduciário.

Importante destacar que esta é ainda uma decisão muito isolada e também não configura o que chamamos de jurisprudência.